A Lei Federal n.º 14.181, mais conhecida como “Lei do Superendividamento”, entrou em vigor no dia 1º de julho de 2021. Além de compartilhar nossas primeiras impressões sobre esse novo regramento, compartilhamos o artigo a fim de que consumidores e credores tenham ciência dos direitos e obrigações que possuem diante de um cenário de superendividamento.
Segundo dados do mapa de inadimplência divulgado pela SERASA em maio deste ano, mais de 62 milhões de brasileiros estavam endividados e acumulavam um passivo de R$ 249,6 bilhões, com valor médio per capita de R$ 3.937,98, o que, em boa medida, decorre da crise provocada pela pandemia de Covid-19.
Até então, o ordenamento jurídico brasileiro não dispunha de mecanismos para ajudar a debelar esse estado de coisas, mas, com o advento da Lei Federal n.º 14.181, buscou-se oferecer recursos para o consumidor tentar reorganizar suas finanças de maneira mais efetiva, mediante acréscimo de diversos dispositivos ao Código de Defesa do Consumidor.
Conforme o § 1º do art. 54-A, “entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”.
O § 2º do art. 54-A, mediante ampliação dos exemplos já ditados pelo § 1º do mesmo dispositivo, foca nos compromissos que mais impactam a rotina financeira dos consumidores: “operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada”.
Naturalmente, a nova lei não representa incentivo à inadimplência, já que suas disposições exigem boa-fé do consumidor endividado, como, de resto, adverte o § 3º do art. 54-A: “o disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição, ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor”.
Preenchidas as condicionantes mencionadas acima, o consumidor de boa-fé e superendividado poderá se socorrer do Poder Judiciário para requerer a repactuação de suas dívidas, a partir do que o juiz, nos termos do art. 104-A, poderá designar audiência, a ser realizada por conciliador credenciado e com a presença de todos os credores de dívidas previstas nos § 1º e 2º do art. 54-A, oportunidade em que deverá ser apresentada proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 anos, respeitadas as balizas do mínimo existencial a ser oportunamente regulamentado, e as garantias e formas de pagamento originalmente pactuadas.
Nesse particular, e como era de se esperar, o § 1º do art. 104-A afastou do processo de repactuação as dívidas oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento. Porém, também foram alijadas as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural, o que, em determinados casos, poderá afetar negativamente o objetivo da nova lei, já que, via de regra, aqueles compromissos são os mesmos que, a um só tempo, mais oneram as finanças dos consumidores brasileiros e oferecem perspectivas de equalização menos flexíveis.
Importante destacar, por outro lado, que o § 2º do art. 104-A impõe ao credor que deixa injustificadamente de comparecer à audiência de tentativa de conciliação a penalidade de ver a exigibilidade de seu crédito suspensa, com interrupção da incidência dos encargos de mora, além de sujeitá-lo compulsoriamente ao plano de pagamento se seu crédito for certo e conhecido pelo consumidor e, mais grave ainda, de deslocar o vencimento da dívida para momento posterior ao do pagamento dos credores presentes à audiência de tentativa de conciliação.
Caso o consumidor chegue a um acordo com seus credores, a sentença que o homologar terá eficácia de título executivo; do contrário, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescente segundo plano judicial compulsório, a respeito do qual os credores que não tenham celebrado acordo com o consumidor terão oportunidade de se manifestar.
Merece especial atenção o fato de que, conforme o § 4º do art. 104-B, o plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, com prazo máximo de pagamento de 5 anos e primeiro vencimento em até 180 dias, contados da homologação do plano judicial, premissas cuja rigidez, salvo melhor juízo, também poderão esvaziar a utilidade prática da nova lei, sobretudo diante do atual cenário de alta inflacionária.
A toda evidência, surgiram interessantes alternativas para o devedor que ainda possua alguma liquidez e capacidade de superar o superendividamento em que se envolveu. Entretanto, a julgar pelas estatísticas mencionadas no início destas primeiras impressões, a nova lei corre sério risco de ver os mecanismos que concebeu se transformarem em meras normas programáticas com pouca eficácia prática, como o são, por exemplo, as óbvias reafirmações de que a Política Nacional das Relações de Consumo deve fomentar ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores (inciso IX acrescido ao art. 4º do Código de Defesa do Consumidor) e de que é direito básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável e de educação financeira (inciso XI acrescido ao art. 6º do Código de Defesa do Consumidor).