Uma dúvida comum de muitos proprietários de imóveis é saber se eles podem utilizar seus bens de natureza residencial para sediar atividade comercial e/ou industrial, e vice-versa.
Para responder a esse questionamento é preciso entender, em primeiro lugar, que contrariando aquele antigo (e equivocado) pensamento de que o direito de propriedade é absoluto, existem hoje limitações urbanísticas e ambientais que podem impedir algumas construções e atividades em determinados espaços da cidade. Assim, percebe-se que, inicialmente, cabe apurada investigação para verificar se na região onde está localizado seu bem imóvel há permissão legislativa para a pretendida alteração de uso solo.
Não bastasse a questão legal, as restrições cartoriais que estejam eventualmente gravadas na documentação original de parcelamentos (loteamentos ou desmembramentos urbanos) também interferem nesse “mosaico jurídico”. Tais restrições cartoriais normalmente podem delimitar, dentre outros pontos, a dimensão dos imóveis, questões arquitetônicas, direitos de vizinhança e, principalmente, o tipo de uso e ocupação do solo e sua dimensão, ou seja, se no local só terão atividades residenciais, comerciais e/ou industriais e em que nível de tamanho/complexidade para cada contexto.
Nesse sentido, cabe um importante questionamento: em conflito entre legislação e restrição cartorial, qual deve se sobrepor?
Para melhor compreendermos a complexidade dessa questão, vamos analisar a seguinte situação hipotética:
O Sr. Beltrano comprou um terreno urbano e deseja nele abrir uma pizzaria, observando que, na legislação daquele município, há permissão para exercício de atividades comerciais na região do imóvel recém-adquirido. Contudo, a vizinha daquele terreno, Sra. Fulana, mostra-se contrária à instalação do negócio, entendendo que tal pizzaria geraria incomodidade de trânsito e barulho na vizinhança, e que comprara o seu imóvel naquele local justamente para que sua tranquilidade fosse garantida. Para fundamentar sua alegação, a Sra. Fulana informa que existe uma restrição cartorial que se aplica ao loteamento onde se encontra o terreno em questão, determinando que lá somente poderá ser construído imóvel com destinação residencial unifamiliar.
Em um cenário como esse, duas legítimas normativas se contrapõem.
De um lado, tem-se uma legislação municipal menos restritiva que, em tese, foi produzida democraticamente, com base nos anseios hodiernos e com base em estudos técnicos, favorável aos interesses do atual proprietário do terreno.
De outro lado, vigora uma restrição cartorial, também legítima, muitas vezes produzida unilateralmente pelo loteador originário, que se baseou na legislação em vigor na época da idealização do empreendimento ou em meros projetos pessoais, mas que pode não mais dialogar com as normas e necessidades atuais da cidade. Mesmo assim, tais restrições cartorárias impõem aos proprietários supervenientes o seu cumprimento – haja vista que concordaram com ela ao comprarem o imóvel em questão, pois as restrições eram preexistentes à nova aquisição e já gravavam o loteamento.
No quadro narrado, portanto, questões de direito público e privado estão em conflito. Ao proprietário interessado, no caso narrado, o Sr. Beltrano vincula-se à permissão da legislação municipal atual, além de demonstrar legítimos interesses de explorar economicamente aquele espaço, produzindo renda, gerando empregos e recolhendo tributos. À vizinha desse possível empreendimento, no caso narrado, a Sra. Beltrana, vinculam-se seus direitos de vizinhança amparados na restrição cartorial para aquele loteamento.
Para ambos, o primeiro passo é procurar um profissional especializado, de confiança, que possua experiência no trato dessas questões, já que uma pesquisa legislativa incompleta ou a interpretação errônea daquilo que seja encontrado gerará obstáculos para a assistência jurídica adequada e expectativas ilegítimas.
Feita a procura por um apoio profissional competente e de confiança, caberá a compreensão, essencialmente:
- Dos alcances e limitações da restrição cartorial em questão;
- Da dimensão dos impactos ambientais, de trânsito e outros possíveis de serem gerados pela modificação do uso e da ocupação do bem imóvel em análise, o que, dependendo do vulto dos impactos causados, pode demandar até mesmo a elaboração do complexo Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV); e
- Do que está disposto nas fontes cabíveis para delimitar e instrumentalizar a pretensão do interessado.
Cumpre adiantar que tal tarefa não é fácil. No âmbito do próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, maior corte do país, sequer há consenso jurisprudencial sobre o tema, com câmaras distintas variando o entendimento, ora em favor da aplicação de legislação municipal ou de outros entes da federação, ora em benefício da aplicação da restrição cartorial vigente para aquele loteamento.
Portanto, o entendimento das nuances desse conflito e a busca aprofundada pelas determinações legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais protegerão os interesses em jogo, competindo aos profissionais e partes envolvidos a procura pela melhor estratégia.