Plataformas digitais: o STF e a competência da Justiça do Trabalho

Plataformas digitais: o STF e a competência da Justiça do Trabalho

“O direito é um fenômeno da sociedade”[1]. Partindo da premissa estabelecida por Hansk Kelsen, pode-se estabelecer que o direito, enquanto fenômeno da sociedade, deverá evoluir junto com ela, sob o risco de passar a ser ineficiente, arbitrário e desconexo com o meio que está inserido.

Nessa necessidade que o direito tem de se manter atualizado, surgem diversos meios para o alcance desse objetivo, sejam eles formais, que são as alterações do texto legal e os informais, dentre os quais destacamos a Mutação Constitucional, que é a forma pela qual o Supremo Tribunal Federal muda o sentido de sua interpretação de terminologias da constituição.

A Mutação Constitucional foi precisamente conceituada por Bulos como: “As constituições, como organismos vivos que são, acompanham o evoluir das circunstâncias sociais, políticas, econômicas, que, se não alteram o texto na letra e na forma, modificam-no na substancia, no significado, no alcance e nos seus dispositivos”[2].

Mas você deve estar se perguntando: O que isso tem a ver com as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal – STF acerca da incompetência da Justiça do Trabalho para julgar as ações movidas pelos parceiros, considerados motoristas autônomos e parceiros, em face das plataformas digitais? Respondo sem medo, tudo! Explico.

Em 2004 foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45, que ampliou os poderes da Justiça do Trabalho, passando esta a ter competência para processar e julgar: ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; ações que envolvam exercício do direito de greve; ações sobre representação sindical; mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição; conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista; Indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização de trabalho; execução das contribuições sociais previstas no art. 195, I, alínea “a” , e II, decorrentes das sentenças que proferir; e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei[3].

Note que, pela leitura do parágrafo anterior, que traz as competências da Justiça do Trabalho, previstas no art. 114 da CF/88, seria o leitor facilmente convencido de que a Justiça do Trabalho seria competente para conhecer aquelas ações. Porém, nos últimos anos, o STF vem realizando uma mutação constitucional mediante interpretação do referido artigo, pela qual passa a entender que a Justiça do Trabalho é competente para julgar as relações de emprego e dela derivada, a exemplo de representação sindical e legalidade de autuações da fiscalização do trabalho.

É certo que somente diferenciar emprego e trabalho por si só daria um outro artigo. Porém, em apertadíssima síntese, podemos classificar que emprego é apenas uma das espécies das relações de trabalho, é aquela relação que se encontra sob o manto da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.

De outro turno, para o STF, não estaria abarcada na competência da Justiça do Trabalho as denominadas “formas alternativas de trabalho”, dentre as quais destacamos: parceria entre salões de beleza e profissionais do setor; contratação de profissionais liberais como pessoas jurídicas; motorista/entregadores de aplicativo e plataformas digitais; transportador de carga autônomo; franqueado.

Após as breves linhas tecidas sobre a Mutação Constitucional realizada pelo STF no art. 114 da CF/88, certo que nova indagação irá surgir: por que esse processo de mutação ocorreu?

 

Primeiramente, cabe destacar que o posicionamento adotado pelo STF está longe de ser por viés ideológico. Na realidade, a Corte Suprema dialoga diretamente com a melhor técnica, que pode passar despercebida por aqueles que olham de forma mais superficial para as decisões que afastaram a competência da Justiça do Trabalho.

Dito isto, como escrito nas linhas iniciais, a sociedade é viva e está em constante evolução. Com essa evolução surgem mais informações, mais oportunidades e formas de se relacionar que até então não estavam previstas na lei e nem nosso imaginário. Essas novas relações possuem novos contornos, novas características e um dinamismo completamente diverso daquele que estávamos acostumados – e que, diga-se de passagem, no Brasil fora construída para dar solução a uma sociedade pós-escravocrata, agrária e pré-industrial.

Olhando para essas novas relações, diante de uma inércia legislativa, o STF passou a buscar a melhor vertente para socorrer aqueles que buscavam a tutela do Estado. Com isso, foi estabelecido o seguinte pano de fundo: 1) Prevalência do negócio jurídico celebrado e prestígio do princípio da legalidade art. 5º, II da CF/88); 2) Incentivo a livre iniciativa (art. 1º, IV da CF/ 88); 3) Valorização do trabalho e da libre concorrência (art. 170 da CF/88)

Agora sim fica claro. Após esmiuçar as decisões proferidas pela Corte Superior temos que, na realidade, este posicionamento é construído com base em um dos princípios basilares do direito contratual, que o Princípio do Pacta sunt servanda[4] e diversos artigos da nossa Constituição que privilegiam a livre iniciativa, o trabalho e o desenvolvimento econômico.

Vamos aprofundar um pouco?

Para isso vamos nos ater exclusivamente ao julgamento da Reclamação nº 60.347/MG, realizado pela 1ª Turma do STF, na 8ª Sessão Ordinária, no dia 05/12/2023, no qual constou a seguinte decisão de julgamento: “A Turma, por unanimidade, julgou procedente o pedido, de forma que seja cassado o acórdão impugnado e, desde logo, julgou improcedente a Ação Trabalhista (processo 0010231.76.2021.5.03.0023), em trâmite no Tribunal Superior do Trabalho, nos termos do voto do Relator. Em questão de ordem, também por unanimidade, determinou que seja oficiado o Conselho Nacional de Justiça, com o levantamento das reiteradas decisões de descumprimento do que tem decidido esta Corte na ADC 48, na ADPF 324, no RE 958.252 (Tema 725-RG), na ADI 5.835 MC e no RE 688.223 (Tema 590-RG). Falou o Dr. Márcio Eurico Vitral Amaro pela parte reclamante. Presidência do Ministro Alexandre de Moraes. Primeira Turma, 5.12.2023”.

Durante a referida sessão de julgamento, os Ministros tiveram profundo debate acerca da temática envolvida, posto que, em que pese já tenham sido proferidas diversas decisões acerca da incompetência da Justiça do Trabalho para esse tipo de demanda, como a RCL nº 59.795/MG por exemplo, tratavam-se todas de decisões monocráticas, sendo esta a primeira decisão colegiada.

Da mesma forma, foi objeto central do debate a reiterada desobediência da Justiça do Trabalho e a consequente insegurança jurídica. Com base nisso, vamos analisar o julgamento da 1ª Turma do STF em dois momentos, o primeiro é a temática “competência da Justiça do Trabalho (tendo todo o exposto até aqui como pano de fundo) entrando no caso sub judice e o segundo é a desobediência da Justiça do Trabalho.

O pretório excelso e posiciona no sentido de que a relação de emprego não está presente. Na verdade, eles vão mais longe, a relação de emprego sequer era vontade das partes, tendo sido firmado um contrato no qual não estão presentes os elementos fático-jurídicos previstos no art. 2º da CLT e os ônus do vínculo empregatício.

Aqui cabe pontuar que, para a existência de um vínculo empregatício devem estar presentes todos os elementos fáticos-jurídicos previstos na CLT. Contudo, em que pese as mais variadas teses criadas, existem elementos que não se amoldam a esse tipo de contrato, como por exemplo a Subordinação Jurídica.

Para o Ministro Sergio Pinto Martins, em sede doutrinária, “Subordinação é a obrigação que o empregado tem de cumprir as ordens determinadas pelo empregador em decorrência do contrato de trabalho. É estado jurídico em que se encontra o empregado em relação ao empregador. É o objeto do contrato de trabalho. Subordinação é submissão do empregado ao poder de direção do empregador”[5].

Ademais, lembra que foi dito que o pacta sunt servanda era um dos norteadores das decisões? Pois bem, para a Corte Suprema, a pessoa que pretende desenvolver a atividade de motorista parceiro não tinha a intenção de ser motorista empregado e, por conseguinte, a plataforma que busca esse parceiro não tinha a intenção de ter um motorista empregado, já que não lhe exigia horário, assiduidade ou qualquer compromisso que o empregado deve ter. Assim, tendo em vista que as partes não tinham essa intenção, não seria aceitável que posteriormente fossem na Justiça do Trabalho buscar apenas as benesses do vínculo empregatício.

Tais fatos demonstram que a relação que existe nesse tipo de demanda jamais teve por parte de seus atores a intenção ou os contornos de uma relação empregatícia. Portanto, entender que a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar esses casos se mostra totalmente descabido, já que o contrato estabelecido entre as partes tinha – e continua tendo – uma natureza específica e diversa, que era parceria comercial, sendo que o mesmo não se deu de forma fraudulenta para solapar direitos trabalhistas, mas, sim, apenas para materializar as vontades das partes.

Assim, afastar a competência da Justiça do Trabalho não é uma perseguição ou esvaziamento dos direitos trabalhistas. Trata-se de observar o contrato estabelecido e a vontade das partes – e, em última análise, da vontade do legislador, que nunca proibiu esse tipo de relação jurídica.

Dito isto, partamos para o segundo momento do julgamento: a desobediência da Justiça do Trabalho, que ao arrepio das decisões da Corte Suprema, vem julgando as demandas e condenando diversas plataformas digitais.

Nós, que temos o privilégio de estar diuturnamente atuando na Justiça do Trabalho, nos deparamos com as mais diversas alegações para manter o processo na esfera trabalhista. Porém, nenhuma delas é permeada de conceitos técnicos. Ao revés disso, todas são dotadas de flagrante viés ideológico.

Durante o julgamento, o Min. Alexandre de Moraes afirmou: “A questão de ideologicamente não concordar (com o entendimento do STF) não justifica a insegurança jurídica que vem gerando diversas decisões”.

O posicionamento adotado pela justiça do trabalho, de avocar a competência, não está ajudando os motoristas que erroneamente buscam o vínculo. Na realidade, o reconhecimento da competência prejudica aqueles motoristas, uma vez que, no afã de julgar as demandas, não foi sequer debatida uma tese ou criado um precedente. Trata-se de uma corrida para julgar, independente da forma e da qualidade jurídica e científica da decisão.

É possível observar que a desobediência apontada perpetra um ambiente hostil, atécnico e imbuído de ideologia. As decisões são proferidas com base em entendimentos acadêmicos, que sabidamente não são fontes do Direito, sem considerar as provas produzidas nos autos.

Nesta linha, o processo deixou de ser algo técnico e uniforme e se transformou numa loteria, onde se a pessoa der sorte e o processo for distribuído para um juiz que entenda pelo vínculo receberá uma “bolada”; já se não for tão sortudo, poderá sair da ação devendo honorários sucumbenciais.

Fato é, que a Constituição Federal autoriza outras formas de trabalho, como já foi objeto de análise pelo STF na ADC 48, tendo como Relator o Ministro Roberto Barroso, que destacou “que a Constituição não impõe uma única forma de estruturar a produção. Ao contrário, o princípio constitucional da livre iniciativa garante aos agentes econômicos liberdade para eleger suas estratégias empresariais dentro do marco vigente (CF/1988 artigo 170). A proteção constitucional ao trabalho não impõe que toda e qualquer prestação remunerada de serviços configure relação de emprego”.

Por fim, tem-se que a medida extrema da 1ª Turma em oficiar o CNJ se mostrou necessária, já que o crescente número de Reclamações demonstra um desrespeito ao STF e à autoridade de sua jurisprudência sendo, portanto, necessária uma ação mais rígida para garantir e preservar a segurança jurídica natural do Estado Democrático de Direito, e o mínimo de técnica em face das canhestras decisões proferidas pela Justiça do Trabalho, sejam elas de procedência ou improcedência do pedido de vínculo.

[1] KELSEN, Hans, Teoria pura do direito. [tradução João Baptista Machado]. 6ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[2] BULOS, Uadi Lammêgos. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. Editora Saraiva. 2010.

[3] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF.

[4] “Os contratos existem para serem cumpridos”. CARLI, Vilma Maria Inocêncio. Teoria e direito das obrigações contratuais: uma nova visão das relações econômicas de acordo com o código civil e consumidor. Campinas: Bookseller, 2005, p. 48

[5] MARTINS, SERGIO PINTO, Direito do Trabalho. – 31. Ed- São Paulo: Atlas: 2015. fl. 149.

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